tu sabe, dirce, que teu nome não é dirce?
(em prosa poética a gente é obrigado a chamar mulheres pelos nomes rejeitados por eça de queiroz em primo basílio. o que esperar de uma consciência presa dois séculos no passado?)
tu sabe que o sarrafo aqui é alto, né, dirce? que minhas expectativas em relação a mim te engoliriam feito uma hidra: sete vezes para um único estômago. sabe também que o que espero de você é quase nada, certo? que não te imagino satisfazendo nenhuma das minhas vontades — não porque você não seja capaz (eu acredito piamente que você é capaz), mas porque não saberei te dizer o que quero. se um dia souber, te juro que você será a primeira a ser avisada e aí poderemos fazer nossa mágica, poderemos nos lançar em um romance, um soneto (apesar de eu odiar sonetos), lançar-nos sobre os bancos giratórios de uma sorveteria.
eu te diria, dirce, que tudo tem ficado mais difícil, mas meu médico me segredou que é bem o contrário: que não somos, nas atuais circunstâncias, criaturas da falta; que não temos buracos em nossos peitos. que estranho. a vida toda aprendi que havia em mim uma BR 381 de falhas a serem recapeadas (uma BR, dirce, é uma estrada muito longa), mas ontem me contaram que não sou um sistema viário. esqueceram, entretanto, de me dizer o que sou, além de um apavoro ao sonho de juscelino para o brasil.
dirce, aqui me despeço. ainda é muito cedo e há um café que precisa ser coado. queria te dizer mais sobre o que sinto, mas estaria mentindo. as poucas palavras que conheço ainda não conseguem me escrever por inteiro. te digo, então, isso: tudo é belo e luminoso. meu rosto é um sol à pino; todas as caras que temos e tememos o são. tente evitar, o quanto puder, as sombras em dias nublados.
reeducação
tu sabe, dirce, que tu já foi uma ninfa? em tebas, para o usurpador lico, em honra a dioniso, na ascendência direta de criaturas-deuses-rios. e eu aqui a te dizer toda essa bobagem, a ser um touro ao qual te amarram. esquece, então, o que sou. resta o futuro. seja para mim, por favor, uma fonte.