treze formas de matar satã
prosa & português
a menina masca chiclete na esquina. sei pelo cheiro que sobe até mim, pelo barulho da goma esticando e da bola estourando feito carne rosa
roque santo
prosa & português
eu, que sei de nada tão bem que sei de quase tudo, não soube te perder. te larguei em um canto murchando, perdendo o encanto, telepata
garimpo
prosa & português
minha memória mais feliz da infância é um carro empoeirado rodando as estradas de Minas, Luiz Gonzaga tocando no rádio e meu pai dirigindo calado ao
fragmento 547
prosa & português
a gente se jogava no rio e ficávamos submersos, contando quanto tempo conseguíamos aguentar sem voltar à superfície. eu sempre terminava em segundo
eu não sou esse tipo de cara
prosa & português
5 minutos atrás. ele pegou o telefone e enrolou alguns minutos, até digitar o número dela. “oi, ju, tudo bom contigo? desculpa falar disso por
babilônia
prosa & português
eu costumava chamar essa cidade de Babilônia: um produto da soberba, muito maior do que deveria ser, dolorosamente concreta, feita de pontes que
abdução
prosa & português
ela era o tipo de criança que acreditava em discos voadores e cresceu para se tornar o tipo de adulto que acredita em amores correspondidos. ela não
2020
prosa & português
estou te escrevendo esta carta porque o futuro reserva para as cartas que você tanto amava o pior dos destinos, a desimportância, mas o peso do
vista desimpedida
prosa & português
ainda vou te ver de novo. assim como quem não quer nada, vou cruzar com você na rua e me dar conta de que ainda quero tudo. vou passar horas embaixo
rastro
prosa & português
desde sempre soube de três coisas: o céu é longe demais; a terra é excessivamente perto; e do espaço entre eles fazemos um inferno. aos oito anos
onésimo
prosa & português
estou serpenteando, na falta de movimento melhor. onésimo foi uma pessoa escravizada no primeiro século, a quem se deu dignidade porque se converteu
odisseia
prosa & português
vou te mostrar partes de mim esquecidas no fundo de gavetas, em interiores de armários que nunca viram o sol. vou me despir, feito teseu à medusa,
bocas de lobo
prosa & português
muitas vezes desejei que uma boca de lobo me engolisse e me cuspisse na sua vizinhança. ouvi dizer que há mais rios soterrados sob são paulo que
bingo
prosa & português
todo bingo é armado. o senhor sabe, né, doutor? a cartelinha é uma mentira, não acredito! e sorte lá a gente chama por ela? nunca ouvi. de onde eu
Turmúlio
prosa & português
tinha noção de que a asa de uma xícara era a parte menos frágil da sua infância. não era bobo. mesmo assim, sabia que dele era esperado que
uma cronologia dos afetos
prosa & português
no vale entre seus seios dormi pela primeira vez o sono dos justos e acordei para a vida dos proletários, ocupando minhas mãos ao te dar trabalho:
tu sabe, dirce, que teu nome não é dirce?
prosa & português
(em prosa poética a gente é obrigado a chamar mulheres pelos nomes rejeitados por eça de queiroz em primo
o outro é sempre um eu que se move
prosa & português
muitas vezes, um eu que sou eu. o movimento é a gênese do desejo: a distância que se cria ao mover-se sempre há
manchete
prosa & português
sabe, te encontrei como se encontra uma revista empapada de páginas não lidas ainda cheirando a banca de jornal (seu osvaldo nunca me vendeu
há uma ausência incômoda de tigres nas ruas
prosa & português
os carros que digerem lentamente suas presas em seu interior bem poderiam, se quisessem, dar lugar a
bermudas
prosa & português
12 de novembro de 1962 querida cássia, aqui todos andam desesperadoramente vestidos. não há, em nenhuma praia, sob nenhuma ótica, quem não
vidro
poesia & português
queria quebrar taças servir o vinho nas mãos beber feito criança de cócoras num córrego cair na lama, enlamear os cabelos acordar pleno de um longo
rua vazia
poesia & português
é um convite para o desastre eu cuspia seu nome na calçada a boca de lobo sorrindo pra mim foi onde nos encontramos pela primeira vez seus
não sei de nada
poesia & português
e se eu te contasse que não sei de nada? absolutamente nada que é um milagre ter decorado todas as letras do alfabeto que a tabuada só conheço até o
hórus
poesia & português
toco o tempo: meus braços carregam as horas feito longos ponteiros; as mãos separam os minutos dos seus cabelos e entre um e outro momento meço a
hilda
poesia & português
não sabe brincar pega pela mão pega pela planta do pé suas pernas tão longas entrelaçam virilhas bacias fêmures ombros largos hilda me disse
eros
poesia & português
ainda espero a trégua espero que me ponha para dormir e vá jogar golfe gude gamão ou vá parar em qual seja a puta que o pariu não te suporto
êxodos
poesia & português
sua pele: meus dedos seu queixo: minha língua seus olhos: meu rosto e suas orelhas a me escutarem dizer: sou assim e não sinto muito por estar
villalpando
poesia & português
tenho uma dúvida tenho uma suspeita cristóbal de villalpando foi quem chegou o mais próximo possível de retratar o céu com seu zócalo de méxico
vencimento
poesia & português
muitos dos meus amigos têm vencido sem nunca terem sabido disso muito de mim foi feito às pressas argamassa de afetos mal colados (embora todos
tu que se abre pra todos
poesia & português
de um jeito que me fecha a cara de uma maneira que não consigo e não falo de pernas veja falo da sucursal do inferno que é
trincheira
poesia & português
quem é que somos? máquinas entrincheiradas sal e ferro na ponta da língua e à beira dos cotovelos nos deitamos sobre a lama no barro primitivo em
transatlântico
poesia & português
de bruços e de quatro muita coisa foi feita (partir depois da meia-noite é um parto antinatural quem já ficou até tão tarde não tem razão para ir o
tocaia
poesia & português
tá se assim você se sente melhor a gente diz as coisas diferente do que foram chama arapuca de tocaia de animal as presas de pressa de chegar não
terceiro olho
poesia & português
escuta e repara: há menos sentidos num corpo do que é preciso para viver invento um sexto olho de hórus ajna hindu alma porosa aberta a tudo e ainda
taquigrafia
poesia & português
mais que um nome um homem todo desses de se escalar inteiro repasso seus traços à noite sob céu e breu deitado sobre travesseiros não há sonho que
soterrei uma coisa aqui dentro
poesia & português
um pé de menino uma língua de boi? oxe um chifre um casco um boi inteiro como pode e um pano vermelho a lhe guiar a ira
se não escrevo não estou vivo
poesia & português
um dia hei de ser feliz de novo se não escrevo se não dobro a caneta se o lápis não me é na mão um pedaço
prometido
poesia & português
espero dizer o que penso mas não é fácil é muita coisa nasci assim a cabeça enorme os ombros largos pelo menos prontos para aguentar todo peso
prescrição
poesia & português
uma guerra nunca cobra seu preço é distribuída de graça em esquinas nos mais inesperados dos países a dosagem muda conforme necessidade (há que se
pais e filhos
poesia & português
queria que não me tivesse sido dada essa capitania de mágoas hereditárias uma terra que me presenteia com os muitos frutos do medo queria uma mão
outra vida
poesia & português
já te encontrei em outra vida uma ferida aberta que não cicatriza te medi com os olhos pesei com a boca já fiz do seu peito um barco (num certo
não sou
poesia & português
sua tarde livre não sou a taxa de mortalidade agravada pelos agrotóxicos não sou uma planta perdida numa selva verde demais nem sou seus
não pude ir
poesia & português
não quis não pude querer não soube dizer: tudo isso é demais e só o que quero é pouco
móveis modernos
poesia & português
imagina quando tudo isso acabar o tanto de restos as migalhas caídas embaixo do tapete os móveis mexidos arrastados para o lado evidenciando tudo:
má tradução
poesia & português
você me diz talvez e eu escuto não você me diz não e escuto nunca você me diz então que jura e ouço apenas que não há garantias embora você me
mise en place
poesia & português
aprendi a duras penas o nome certo da falta do lábio crispado desejando tudo refogando o mundo em fogo alto decorei com afinco mil gostos colecionei
meu corpo olívia
poesia & português
deixou há tempos de ser uma máquina embora lhe seja programável tantas e tantas coisas: a dor de se sentir fora do eixo a fagulha
mais a saber
poesia & português
há sempre mais a saber: dedos ou língua? sacolas verdes ou brancas? o que acontece num ralo de pia? há sempre muito mais para ver: savanas
maio
poesia & português
você me diz que ninguém nunca prestou atenção na sua fome eu te respondo com a mão sobre o ventre: eu te devoraria, mas não o alimento aos outros só
laços
poesia & português
todo corpo carrega uma segunda silhueta um segundo rosto oculto que nunca viu o sol todo corpo é filho de alguém e órfão de uma saudade
jihad
poesia & português
um mujahidin é um guerreiro santo a guerra nem tanto claro que você vai discordar vai pegar em armas desde já apontar uma cronologia inteira de
intercâmbio
poesia & português
estou à espera de encostar minha voz na tua até no espaço íntimo entre elas ouvir ecoar uma nova língua
homoousios
poesia & português
talvez te ensinem o contrário mas acho pouco provável é bem capaz que te apontem um dicionário como prova viva de que há formas muito corretas de se
hermes
poesia & português
tudo o que vivemos é culpa única e indivisa dos céleres pés de hermes trismegisto das suas mãos feitas de seda portátil lâminas serradoras de carne
gancho
poesia & português
faz assim: do seu jeito não o contrapeso de uma ação mal feita é a massa do futuro e não quero nada falido aqui faz assim: dobra a roupa de cama
flerte
poesia & português
na noite ferina nossas pupilas são lua crescente (crescente fértil) e o fogo que me incendeia é o mesmo que te ilumina você me pergunta: seria o
fio
poesia & português
estou cansado de amolar facas apontar o gume para o pescoço ameaçar a garganta para que nenhuma palavra saia cansado de esmurrar pontas e portas me
farsa
poesia & português
ontem fomos farsa hoje somos tragédia amanhã quem sabe a história nos deixará em paz
eu faço tudo
poesia & português
eu digo sim eu cuspo fogo eu como vidro sento na calçada coço o queixo meço o tempo trato a distância feito um canal no panamá: trafego por ela
estupendo
poesia & português
estou estupendo cecília nunca me senti melhor meus cabelos voltaram a ter vida não estou fazendo nenhum tratamento xampu não é tratamento cecília
dominação
poesia & português
você me segura com as mesmas mãos com que nossos antepassados matavam porcos você me diz com a boca cheirando à mel que é tempo de encerrar a
dilúvio
poesia & português
sei o destino das coisas porque as penso sei que não o sei porque o penso logo lavaremos as roupas logo vestiremos casacos e o que pensamos
desperdiçável
poesia & português
onde me encontro no mundo este lugar que me enfeitiça fascina e conquista o fôlego lado direito do rosto em que sepultam beijos lugar onde te
daqui te vejo
poesia & português
eu um anil que pega no olho cor sutil soco no estômago eu uma lebre dependurada um celeiro em chamas um troço de carregar debaixo do
continentes
poesia & português
são ilhas que já encontraram seus náufragos
condensação
poesia & português
estamos orbitando um espaço vago e amplo feito água e tão assassino quanto estamos girando calcanhares cabeça e clavícula numa ciranda confundida
cecília
poesia & português
as ruas estão cheias de arapucas assim como estão os corpos as caixas torácicas prendendo tudo lá dentro o rabinho de um sentimento veja
caçada
poesia & português
já fui carne de caça hoje predo o que me mata não me atravessam balas os músculos repelem corpos estranhos todo os dias das oito às seis e na hora
carnaval
poesia & português
amanhã ainda será carnaval amanhã começará março e seus rios se insinuarão morro abaixo soterrando montanhas aos côvados eurídice teu nome? sigo
cabral
poesia & português
falta desejo na falha sobram atos específicos contravenções típicas de tempos medievais sobram cruzadas santas coqueluches coloniais a violência
avesso
poesia & português
tenho caçado palavras e não há o que encontrar para prender com corda, arapuca, ou ameaçar com a velha winchester carregada de meu avô gritando para
antígona
poesia & português
foi a última filha de édipo a filha que não o abandonou a filha que lhe perdoou o erro aquela que entendeu que evitar o erro é apenas um
abarcados
poesia & português
está chovendo agora faz dez horas que está chovendo as poças de água na rua são tão grandes que abarcariam cada uma um dilúvio e uma arca é quase
9:31
poesia & português
todo dia entre o café e o vestido vermelho a diferença é pouca tudo queima 9:31 dia de feira as frutas congeladas na geladeira alguém achou o
3 am
poesia & português
reviro tudo estou sem sono não é uma desculpa nem duas nem quatro mas talvez três (da manhã) e resta uma série de pordizeres palavras que me tomam
tenha calma
poesia & português
nada é tão urgente exceto talvez deixe-me ver sim exceto talvez definitivamente isto
maria eulália
poesia & português
eu te amei como a um ser dos séculos passados (o nome ajudava) seus pais te odiavam, maria eulália? acha que tudo que te aconteceu
cotovelo
poesia & português
há um deus morando no osso do meu cotovelo quando o pouso na janela ouço um estalo um estouro uma reclamação um choro o clamor pelo fim dos tempos
feito fogo
poesia & português
eu engulo o escuro me chamo estrela oblitero a vida a cada bilhão de anos
família
poesia & português
caetano era um nome sem homem aparvalho entre as montanhas tinha uma cabra tinha galinhas sob seu jugo sob olhos muito ternos que as protegiam das
joana
poesia & português
eu te deixaria joana cortar meus cabelos eu te adoraria feito a uma santa andaria em um cavalo adestrado pelas suas mãos eu seria a estaca da
escrevo palavras que me protegem de mim
poesia & português
sinos, escudos, gumes, lâminas outras que me erguem da concha e do túmulo da morte cotidiana alavancas
edifício
poesia & português
o corpo um efêmero etéreo erodido edifício erigido a eros onde o único erro é não ser quem se é rgue
dê tempo ao tempo
poesia & português
tempo ao tempo tempo ao tempo engole logo filha da puta a areia e esta ampulheta
arco & flecha
poesia & português
sonhava que atravessava uma faixa etária pela qual os anos passavam velozes feito flechas mirando um alvo em movimento e hoje acordei com tinta
toureio
poesia & português
cerra a semana cansaço incalculável soma de mil portas atravessadas pó de móveis rodopiando pelo ar a sala é vazia de formas e sobre o chão está o
serpentário
poesia & português
sou protegido pelos deuses das más escolhas (meu ascendente é o fundo infinito deste copo repleto do mais líquido veneno destilado em escorpião,
mirabel
poesia & português
diziam mirabel eu mirava e não era pra olhar ninguém se chamava bel era um biscoito wafer qualquer coisa assim eu amava ninguém no interior sabia
mirabel
poesia & português
diziam mirabel eu mirava e não era pra olhar ninguém se chamava bel era um biscoito wafer qualquer coisa assim eu amava ninguém no interior sabia
jaguar
poesia & português
Em tempos de cólera, eu olho Impassível jaguar, insone como um estômago vazio A fome de vida a me torturar o corpo O peso dos dias a costurar as
festa barata
poesia & português
comprei o teu ingresso, o meu, e o de maria quem sabe eu passe hoje à noite pra te buscar não sei nem hora certa, nem lugar mas sei que a música vai
eu não soube nascer
poesia & português
saí do útero ok grande vitória mas o processo é outro de lá pra cá a dor do parto (isto é, a dor de criar a vida) reapareceu
estou rachando em dois
poesia & português
esperava que fizesse certo barulho, mas não é precisamente o silêncio o que me parte
anêmonas me cultivariam se pudessem
poesia & português
no leito arenoso do mar onde a luz ainda lambe a areia me dariam na boca seu veneno me ensinariam que todo