eu costumava chamar essa cidade de Babilônia: um produto da soberba, muito maior do que deveria ser, dolorosamente concreta, feita de pontes que ligam o capital a outras capitais — redemoinho de mil coisas a se fazer o tempo todo, em qualquer lugar, e a se esquecer frequentemente (mais do que frequentemente: sempre, um moto-contínuo mais contínuo que qualquer outro moto). não chamo mais. Babilônia também tinha Jardins, mas eu não chamo mais. Babilônia caiu e isso aqui não tá indo lá muito bem… mas não. lembro de uma aula de sociologia em que tentaram me ensinar o que era etnometodologia. etnome–o-cara-que-inventou-isso-se-chamava-Garfinkel-(i, não u)-e-eu-só-conseguia-pensar-onde-é-que-tava-o-Simon–todologia. puta merda. captei uma coisa ou outra durante a aula, mas o básico é que essa é a ciência da realidade que permeia todo mundo, por meio do estudo do que todo mundo faz o tempo todo. ou algo assim, tô nervoso. mas aí eu trouxe essa ideia pra vida desde então e comecei a olhar pra tudo tentando encontrar o contexto, as relações, os motivos, os significados, etc. e tem? e tem, menino, tem muito. eu vim pra cá anos atrás e comecei a questionar se conseguiria continuar fazendo o mesmo aqui, porque essa cidade tem dessas, te dá material de sobra pra pensar, mas o tempo é de menos. isso aqui tenta te engolir feito Cronos a Zeus (tão fraternalmente quanto) e você se pergunta por que demônios eu tenho que passar por uma coisa dessas na minha vida, eu só queria ganhar dinheiro pra comprar uma TV. (você compra a TV no meio do caminho, mas aí o caminho dobra de tamanho, abre um novo lugar maneiro na rua de baixo, o cantor que você gosta marca show, o cara da outra empresa que parece ser mais legal que a sua te chama pra trabalhar lá e você só consegue pensar: puta merda, bicho, mas que caralha, quando é que eu vou ter um dia de paz?). mas aí o porquê de eu não chamar mais essa cidade de Babilônia é que Babilônia foi destruída, ficou no passado, presa à memória como única forma de subsistir no tempo. mas isso aqui, isso aqui é meio que pra sempre, é o futuro plasmado no agora, tão rápido, tão bonito, cheio de sinais vermelhos ficando verdes pra gente passar e um monte de novas pessoas com dúzias de esperança chegando todos os dias de tudo quanto é canto pra tentar extrair o máximo que esse lugar pode dar (milhares de pessoas, dia após dia, e o espaço para recebê-las parece dobrar toda vez). parei de achar que essa é uma cidade-monstro que só quer nos engolir. ela engole, sim, mas cronologicamente nos cospe de volta, anos mais fortes. e é só isso. abandonei Babilônia quando me dei conta de que esse lugar é muito maior do que ela foi, é tão extenso e denso quanto o presente e, exatamente por ser feito o presente, pode se transmutar em qualquer coisa que pudermos fazer dele. por mais limitadas que sejam as 24 horas que a gente tem à disposição todos os dias, elas são espetacularmente possíveis aqui. eu parei de chamar essa cidade de Babilônia porque não quero mais me sentir um estrangeiro em casa.
em casa.